“Eu menti!” — foi com essa frase que comecei a noite. Ela piscava em neon imaginário na sala apertada do meu apartamento alugado, ecoando entre as prateleiras de livros e a planta que insiste em morrer devagar. Ele olhou pra mim, com aquela cara de quem achava que a vida era um roteiro da Netflix. Pena que nem isso eu tinha.
“Não tenho Netflix, nem vamos transar”, completei, como quem arranca um band-aid emocional. A expressão dele misturava confusão com um certo recalculando rota. Acho que pensava que eu funcionava como uma série: três episódios de conversa e no quarto, a cena quente. Mas eu sou mais capítulo de Marx do que comédia romântica.
Aliás, falando em capítulos — “Abra o capítulo 1 do Capital”, eu disse. “Hoje estudaremos o capitalismo em seu átomo, sua essência irredutível: a mercadoria.”
Ele riu. Nervoso. Achou que era ironia. Mas eu falava sério. Porque às vezes o que sobra pra gente é entender o sistema que empacota até os sentimentos em etiquetas e boletos. No fundo, ele queria desejo; eu queria decifrar por que um tênis custa metade do meu salário e ainda assim parece indispensável. Prioridades, sabe?
A noite terminou com Marx aberto na mesa, café amargo na caneca lascada, e o silêncio cheio de coisas não ditas. Porque algumas noites são feitas não pra consumir, mas pra desconstruir. E não tem nada mais revolucionário que admitir: eu menti, sim. Mas só pra proteger o pouco de verdade que ainda me resta.
©️ Beatriz Esmer
